Rejeitemos todos os disparates, fábulas
inconsistentes, falsas opiniões, ilusórias frases pomposas. Guardemos distância
de tudo que é nocivo, mesmo que os adversários nos ensurdeçam com seus
discursos astutos ou agressivos. Porque o mistério divino ‘não consiste em
discursos persuasivos da sabedoria humana, mas na manifestação do
Espírito".
O Unigênito, que conforme as Escrituras era Deus e Senhor de
todas as coisas, revelou-se a nós. Foi visto sobre a terra e iluminou os que
jaziam nas trevas, fazendo-se homem. Não só pelas aparências: não se pense
assim, é loucura pensá-lo e dizê-lo! Nem tampouco porque se tivesse tornado
carne mediante uma mudança ou transformação: o Verbo é imutável, ele permanece
eternamente o mesmo! Nem porque sua existência fosse contemporânea à da carne:
ele é o Autor dos séculos! Nem porque, como pura palavra (sem subsistência) se
tivesse tornado homem: é ele o pré-existente, que chama as coisas a existirem e
nascerem! É ele a Vida, procedente da Vida, que é Deus Pai, o qual, como sabemos,
o é na realidade, existe em própria hipóstase. Nem simplesmente se revestiu de
uma carne privada de alma racional: foi verdadeiramente gerado por uma
mulher, mostrou-se homem, assumindo a forma de servo, ele, o Deus Verbo, coeterno
e coexistente com o Pai; e assim como é perfeito em sua divindade, assim o é na
sua humanidade, constituindo um só Cristo, Senhor e Filho, não apenas por
justaposição da divindade e da carne, mas pela conexão paradoxal de dois
elementos completos, a humanidade e a divindade, num único e mesmo ser.
- Quem, pois, foi gerado
pela santa Virgem? O homem ou o Verbo procedente de Deus?
- Eis aí o erro, o pecado, contra todas
as conveniências e contra a verdade! Não me vás dividir ou separar o Emanuel em
um homem e um Deus Verbo, não mo faças um ser de dupla personalidade. Porque senão estaremos incorrendo numa afirmação
condenada pela Sagrada Escritura, não estaremos pensando corretamente. Eis, na
verdade, o que diz um dos discípulos de Cristo: "Quanto a vós,
caríssimos, lembrai-vos do que foi predito pelos apóstolos de nosso Senhor
Jesus Cristo, quando vos falavam: nos últimos tempos virão impostores, que
viverão segundo suas ímpias paixões, homens que semeiam a discórdia, homens
sensuais que não têm o Espírito”
- Então não se deve
introduzir divisão alguma?
- Não. E, sobretudo não se devem afirmar
dois seres após a união, pensando cada um em separado. É preciso reconhecer que
a mente considera certa diferença entre as naturezas: a divindade e a
humanidade não são, seguramente, a mesma coisa; mas ao mesmo tempo que tais
conceitos, há de se admitir a fusão das duas numa unidade.
Assim, ele nasceu de Deus Pai enquanto Deus, da Virgem
enquanto homem. Esplendor derivado do Pai, acima de toda palavra e de todo
pensamento, o Verbo é dito também gerado por uma mulher, pois, descendo à
humanidade, tornou-se o que não era; não para ficar nesse aniquilamento, mas
para que o creiamos Deus, mesmo quando se manifestou na terra sob uma forma
como a nossa; não simplesmente habitando no homem, mas tornando-se, ele mesmo,
homem por natureza, e conservando sua própria glória. Assim, esses dois
elementos tão distantes de qualquer consubstancialidade, separados por
incomensurável diferença, a humanidade e a divindade, Paulo os vê unidos num
só, em razão da Economia, indicando que dos dois se constituiu um só Cristo,
Filho de Deus: "Paulo - disse ele - servo do Cristo Jesus, chamado
para ser apóstolo, segregado para o Evangelho de Deus, outrora prometido pelos
profetas nas santas Escrituras a respeito de seu Filho, nascido, segundo a
carne, da semente de Davi, estabelecido em seu poder de Filho de Deus, segundo
o Espírito de santidade".
Veja-se como ele se diz "segregado para o Evangelho de
Deus", embora escreva também: "Não pregamos a nós, mas a Jesus,
Cristo e Senhor", e ainda: "Não quis saber nada mais entre vós senão
Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado".
Ora, ao mesmo tempo que designando-o como Filho de Deus,
Paulo diz também que Cristo nasceu da semente de Davi e foi estabelecido Filho
de Deus. Como - diz-me - é Deus o que nasceu da semente de Davi? O Filho
anterior aos séculos, eterno enquanto nascido de Deus - pôde ser estabelecido
filho de Deus, como se de pouco tivesse vindo à existência? Na verdade, ele
mesmo disse de si: "O Senhor me falou: Tu és meu
Filho, eu hoje te gerei”, e no entanto a palavra "hoje" nos indica o
momento presente, não o passado.
- Isso não deixou de me embaraçar muito,
e diria que outros também tiveram dificuldades para compreendê-lo.
- Para os que separam e dividem (o
Cristo), há de que se embaraçarem, com efeito; mas para os que afirmam a
unidade no Emanuel, é fácil o conhecimento autêntico dos sagrados dogmas. O Filho coeterno a aquele que o gerou, e anterior
aos séculos, quando desceu à natureza humana - sem abandonar sua qualidade de
Deus, mas acrescentando-lhe o elemento humano - pôde na verdade ser concebido
como oriundo da semente de Davi e ter um nascimento recente. Pois o que se lhe
acrescentou não lhe era estranho, e sim próprio; assim, foi computado como um
consigo, exatamente como no caso do composto humano, feito de elementos
naturalmente desiguais (refiro-me à alma e ao corpo) e que no entanto fazem
resultar um único homem. Assim como a carne empresta seu nome ao vivente inteiro,
ou a alma também pode designá-lo, eis o que acontece em Cristo. Pois não há
senão um Filho e um Senhor Jesus Cristo, antes de assumir a carne e depois que
se manifestou como homem. Não estaremos assim renegando o Mestre que nos
resgatou, mesmo se ocorre vir designado por suas fraquezas humanas e pelos
limites impostos por seu aniquilamento.
- Não estou seguindo bastante bem;
gostaria de uma explicação mais clara.
- Nosso Senhor Jesus Cristo disse, dirigindo-se aos judeus:
"Se fôsseis os filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão, em vez de
procurar matar-me - a mim que vos disse a verdade. Isso Abraão não fez".
Paulo, por sua vez, escreve: "Foi
ele que, nos dias de sua vida mortal, ofereceu preces e súplicas, acompanhadas
de um grande brado e de lágrimas, àquele que o poderia salvar da morte, e foi
ouvido por sua reverência. Embora Filho, aprendeu pelo sofrimento o que
significa obedecer".
Diremos, então, que Cristo
é puro homem, em nada superior ao que nós somos?
- Não, não se diga assim!
- Ele, a sabedoria e o poder de Deus,
admitiremos que tenha descido a tal grau de fraqueza a ponto de temer a morte e
a ponto de suplicar ao Pai a salvação? Tiraremos ao Emanuel o privilégio de ser
a Vida, por natureza? Ou estaremos falando corretamente ao reportar à
humanidade e à limitação da natureza semelhante à nossa as expressões menos
honrosas, percebendo ao mesmo tempo a glória sobrenatural que lhe vem dos
traços de sua divindade, compreendendo que o mesmo é, a uma vez, Deus e homem,
ou antes, Deus feito homem?
- Como assim, diz-me?
- Venha testemunhar entre nós o ilustre Paulo, de quem são
estas palavras: "É
da sabedoria que falamos aos perfeitos, não de uma sabedoria deste mundo nem
dos príncipes deste mundo, condenados a perecer. Falamos da sabedoria de Deus,
misteriosa e secreta, que nenhum dos príncipes deste mundo conheceu. Porque se
a tivessem conhecido não teriam crucificado ao Senhor da glória" . E ainda: "Esplendor da (divina) glória e
figura da (divina) substancia, ele mantém o universo com o poder de sua
palavra. Depois de ter realizado a purificação dos pecados, está sentado à
direita da Majestade divina ro mais alto dos céus, tão sublimado acima dos anjos,
quanto excede o deles o nome que herdou" . De fato, ser e chamar-se
"Senhor da glória" não está muito acima e além de toda criatura,
sujeita à mudança? E omito o que se refere à espécie humana, que é bem menos
importante: são aqui mencionados os anjos, as potestades, os tronos, as
dominações, são mencionados até os sublimes serafins, reconhecendo-se que estão
muito aquém desse sublime Esplendor, o que é claro ao menos para quem não traz
o espírito corrompido. Tais privilégios, verdadeiramente extraordinários, são
apanágio da natureza que reina sobre o universo.
Ora, como o Crucificado poderia tornar-se Senhor da glória?
O Esplendor do Pai, a imagem de sua substância, o que sustenta o universo por
sua palavra poderosa, ei-lo dito feito superior aos anjos: penso que só porque
assumira antes uma condição inferior à deles, aparecendo como homem. Está
escrito, com efeito: "aquele que foi rebaixado um instante sob os anjos,
Jesus, nós o vemos coroado de glória e de honra, por causa da morte que sofreu ".
Apartaremos então o Verbo, nascido de
Deus Pai, da transcendência que lhe cabe por sua essência, da exata semelhança
com esse Pai, quando o vemos inferior em glória aos anjos, na situação humilde
que lhe trouxe a Economia?
- Não, por certo. Não penso que se deva
separar completamente o Verbo de Deus das fraquezas humanas após sua união com
a carne, nem despojar da divina glória o elemento humano, se se julga e se
confessa estar este no Cristo. Alguns perguntarão, contudo, bem o sabes: mas
quem é então Jesus Cristo? O homem nascido da Virgem ou o Verbo nascido de
Deus?
- Francamente, é tolice estender-nos
inutilmente na resposta a um vão palavreado. Contento-me em dizer que é
perigoso e culpável separar em dois, pondo cada um à parte, o homem e o Verbo:
a Economia não o admite, a Escritura inspirada clama que Cristo é um. Quanto a mim, digo que nem o Verbo divino sem a
humanidade, nem o templo nascido da mulher, enquanto não está unido ao Verbo,
devem ser chamados Jesus Cristo. Por Cristo se entende o Verbo procedente de
Deus, unido à humanidade. Superior à humanidade enquanto Deus, por natureza, e
Filho. Inferiorizado à glória digna de Deus, enquanto homem. Por isso, ora
disse ele: "quem me viu, viu o Pai" , "eu e o Pai somos um"
; ora disse, ao contrário: "meu Pai é maior do que eu" . Não é menor
do que o Pai enquanto lhe é idêntico em substância, é seu igual sob todos os
aspectos, mas se diz menor em razão do que tem de humano. As Sagradas
Escrituras o pregam também assim, ora como inteiramente homem, sem mencionar
sua divindade, ora como Deus, sem nada dizer de sua humanidade. Não erram, por
causa da conjunção dos dois elementos na unidade.
Fonte: Ecclesia
GOMES, C. Folch Antologia dos
Santos Padres. São Paulo- Ed. Paulinas 1979
Foto retirada da internet
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Ricardo Feitosa e Marta Lúcia
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